Confinamento com fim elevado
Por Alexandre Honrado
O filósofo alemão Nietzsche, a quem erradamente se “atribui” a morte de Deus, morte simbólica, filosófica, e, segundo a sua leitura atenta, ocorrida dentro do ser humano, uma ideia que, todavia, já era expressa mais de um século antes dos seus raciocínios, fala amiúde do divino nos seus escritos e entre outras sabedorias produziu este frase num livro (que li em francês – Le Cas Wagner – porque infelizmente não domino o texto em alemão): “O que é bom é leve, tudo o que é divino corre sobre pés delicados.”
Chegou o meu tempo de revisitar a frase.
Criámos, antes do coronavírus, uma extraordinária e patética civilização que deu prioridade ao superficial, ao rápido, ao ligeiro, ao leve, preferindo a má ignorância (a que se recusa a saber, entender, interpretar, a que não se rala, enfim) à boa ignorância (a que ignora mas procura interrogar, investigar, aprender, saber, mudar os sistemas errados, solucionar problemas quotidianos, como a incapacidade de relacionamento humano ou a cura de uma doença, a criação de uma vacina contra um vírus).
Sei por experiência própria – porque dediquei a maior parte da minha vida a escrever e a ler, a pensar e a partilhar o que penso à procura de corrigendas e de outros pensamentos –, sei como o confinamento tem um lado extraordinário quando isolamento não significa solidão e estar confinado não significa limitar o campo vastíssimo do que podemos imaginar, criar, fazer.
É sempre depois de um período de confinamento (dentro de nós e mais ou menos prolongado) que sai para o mundo uma letra de canção, uma história de ficção, um ensaio académico, um livro uma pintura, uma escultura, um desenho, a criação daquela aplicação informática que vai dar prazer ou salvar quem a tiver no seu aparelho portátil e comunicador.
É como (me) dizia o (tão saudoso) escritor Luís de Sttau Monteiro: “O escritor é uma pessoa que tem de passar longas horas sozinho” e este TER, esta necessidade, prende-se com a não leveza do local cerebral aonde as ideias o esperam e que tem de visitar e muitas vezes revisitar para no regresso trazer à tona alguma coisa que ache digna de partilha.
Ensinaram-me e agora ensino que um dos erros da nossa cultura é o de tomar o abstrato pelo concreto. E a abstração é agora uma capacidade que temos ampliada pela ilusão que nos trouxe o poder técnico de que usufruímos (e nem sempre dominamos). É essa também a causa profunda da cultura da morte em que vivemos (quem tem medo do Lobo Mau numa época em que ele vive à nossa porta e, transformado em vírus, até dentro de nós?). O que temos à volta, normalmente trazido pelos órgãos de comunicação ou pelos seus arautos bem pagos e sempre parciais é, como diria George Steiner, uma amnésia planificada. As mensagens surgem, leves e rápidas, para que sejam, leve e rapidamente esquecidas. Ignoram (e ignoramos) o ser humano e a sua dignidade. O concreto nasce da profundidade. Do que, em confinamento, se solidificou como coisa sólida, por menos que seja definitiva. A palavra concreto não se coaduna com leveza. Significa o que se formou juntamente, o que cresceu junto (como na expressão latina concrescere que lhe dá a origem). E crescer junto é de uma estranha densidade, onde a leveza não fica se o peso desse crescimento não lhe der firmeza.
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